Sarah tem o nome de origem Hebraica. Estéril até os 99 anos, até que foi mãe de Isaac. Daí, o Deus uno de Gênesis capítulo 17, versículo 15 e 16, diz “De agora em diante sua mulher já não se chamará Sarai; seu nome será Sara.Eu a abençoarei e também por meio dela darei a você um filho. Sim, eu a abençoarei e dela procederão nações e reis de povos".
Conheci Sarah num rompante. Logo me apaixonei. Ela era totalmente subversiva. Poucos anos antes, eu já ouvia falar seu nome pelas bocas injustas e ignorantes. Ah, essa menina beija meninas, diziam. Ela era uma personagem saída dos quadrinhos ou de um filme da A24. De cabelo sempre colorido, e de risada gostosa. Fomos se aproximando, se aproximando. Fiquei completamente apaixonado. Nosso primeiro encontro foi na sua casa vendo clipes conceituais e comendo uma travessa de bolinha de queijo frita no óleo quente.
Quero frisar que concordo muito com a Mônica Martelli, quando ela diz que nós nos apaixonamos pelos nossos amigos, por que a gente começa a compreender seus defeitos como meras manchas de acne, e começa a deglutir eles como um bom e curado conhaque. Amargo, porém sedutor. E eu me apaixonei por ela. Nesse sentido.
Tivemos muitas trocas verdadeiras. Nós nos mostramos vulneráveis, já choramos juntos. Já dividimos a cama em quatro pessoas. Já realizamos as maiores fantasias juntos. Até me ver transando a pobrezinha já viu. Tínhamos ideias toscas e joviais, como a de tomar remédio para infecção urinária pelo simples fato da urina sair colorida. Nunca me esqueço que, quando ela viu o próprio xixi, decidiu tingir o cabelo com aquele verde encorpado logo em seguida. Qualquer pessoa amaria tê-la por perto. Os cabelos sempre traziam uma nova skin para minha amiga. Teve o branco que dava um ar de atriz pornô, daí teve o ½ rosa ½ laranja da Hayley Williams, daí teve o azul sereia, o rosa harajuku e finalmente o verde xixi (meu preferido).
Sarah sempre teve facilidade com cabelos. Ela era uma das únicas que eu confiava para desenhar com a maquininha no meu couro cabeludo. Fazia uma excelente hidratação, fazia tranças africanas, fazia penteados incríveis. Foi com ela que a minha afilhada cortou o cabelo pela primeira vez. É claro que tem que ser com ela, ela é minha amiga, bati o pé. Ela também esteve nos meus bastidores em 2018, numa peça mal escrita que fiz na minha cidade natal, inspirada pelos espetaculares contos de Agatha Christie. Que senso corajoso. O texto virou uma desonra ao legado de Christie, porém ficaram boas lembranças da época. Sarah fez o cabelo de todas as minhas atrizes, e o seu cachê foi puramente créditos nas linhas finais do espetáculo. Mas ela deu o nome na festa que fizemos depois, como sempre.
Durante a desgraça da década de 20 do século 21, auge do medonho Covid, Sarah perdeu o seu pai. Seu pai era um tiozão, totalmente querido, que passava a melhor bisteca de todas, e que adorava receber os amigos da Sarah na sua casinha abraçadora. Foi um momento terrível. É sempre importante lembrar que, na época, os velórios duravam menos que de costume, e que você podia prestar condolências às pessoas que perderam entes queridos apenas de longe e não podia abraçá-las. Não podia desejar os sinceros sentimentos. Não podia. Principalmente se a causa da morte fosse o Covid. Eu estava lá. Ouvi seus gritos, Sarah, desejando que aquilo não fosse real. Mas seu pai descansou, depois de semanas de saturação baixa e descasos políticos quanto à vacinação. Essa culpa sempre irei atribuir ao presidente da época. Jamais o perdoarei.
Pois é, nem tudo são flores. Sarah sempre se apaixonou pelas pessoas mais encruadas. O que ela tinha de saúde no resto do corpo, ela tinha de necrose no dedo indicador da mão direita. Nunca vi. Já cheguei a questioná-la e ela sempre desviava o assunto. Alguns foram marcantes, outros foram meros figurantes de uma fala só, como aquela garçonete da lanchonete pin-up, ou um porteiro carismático de uma novela qualquer.
Um destes figurantes, deu à Sarah a benção de ser mãe. Assim como Abraão fez com Sarai na Bíblia por intermédio do Deus uno de Gênesis. Ao contrário do texto bíblico, Sarah não teve um menino e sim uma menina. A escolha do nome foi especial, porque a única outra referência de mesmo nome, era uma drag queen de um reality show que eu amava na época da sua gestação. Colocamos uma música de ballroom e foi a única dentre tantas que a bebê se mexeu durante horas tentando influenciá-la a gostar de rock alternativo ou as clássicas da MPB. Tarde gostosa, nós nos matamos de rir.
Diante de todos os relacionamentos frustrados, choros encargados e cárceres privados que eu assisti minha amiga Sarah vivendo, o mais dolorido foi o último. E esse relacionamento é o porque eu tomo nota deste texto. Ela se apaixonou por uma mulher.
Essa mulher nasceu na década de 80, em algum bairro dos Estados Unidos, filha de outra branca bem conhecida. Parida no epicentro do Capitalismo, e ficou rapidamente conhecida no mundo inteiro. Pois é. Para os rápidos no gatilho, vocês já sabem de quem eu estou falando. Para os mais lentos, que fortaleçam a memória. Para os céticos, que doença mais terrível. Para os cristãos, obra do inimigo.
Sarah e essa mulher se conheceram por intermédio do próprio encourado. Concordo com os cristãos, às vezes, quase nunca. Dessa vez sim. O encourado começou a namorar Sarah rapidamente. Como um adicto. Ela estava trabalhando numa livraria, trabalho este que, sempre combinou esteticamente com a mesma, e o encourado foi lá imprimir um currículo. Não sei como nem quando isso aconteceu, mas confabulo uma cena meio de filme romântico. Os relacionamentos costumam surgir na falta de algo, e este não foi diferente. Ela vinha de anos recheados de solidão pela maternidade, pelo descaso do figurante que a deixou prenha, mãe em tempo integral, prestadora de serviço em horário comercial, órfã de pai, sem muitas prospecções. E se debulhou no encourado.
Sarah não me contou do novo namorado, eu fui ver pelas redes sociais que ela havia começado a namorar. Mandei mensagem e ela me contou estar morrendo de amores. Ufa, minha amiga será correspondida, pensei. Que este namoro venha com tudo de bom que ele possa vir. Amém.
Eu estava errado. Errado. Logo o encourado começou a se mostrar vulnerável e agressivo. O rosto dele não o deixava mentir, por mais que eu caia na besteira do estereótipo, e isso soe preconceituoso. Sigo crente de que pessoas carcerárias, devem ser ressocializadas na sociedade sim, porém, ainda peco em colocar todos numa mesma caixa. Abraão que me perdoe.
Finalmente o conheci, no começo de outubro de 2022. A pandemia estava flexibilizando os contatos, e trombei com o casal. Minha amiga sempre linda e alegre, estava pálida e apática. AMIGA QUE SAUDADE. oi amigo, tudo bem? CLARO QUE NÃO NÉ, FAZ MESES QUE NÃO TE VEJO. pois é, tô sumidinha. Que diálogo mais tosco. Combinei ele ainda com vodka vermelha e refrigerante de laranja. Muito prazer, encourado, me chamo Guilherme. O filho da puta ainda se mostrou abraçador, como a casa do falecido pai da minha amiga. Logo foram embora, de maneira discreta e ali eu ainda não podia prever o que minha amiga iria passar quando abrisse o seu relacionamento para a mulher entrar. Vamos chamar essa mulher de Cramunhão.
Depois disso, passaram-se semanas discretas que eu não tive notícias da minha amiga. É claro que o senso deturpado e egoico do eu-lírico que aqui transcrevo esta experiência, procurou nos resquícios das doenças mentais de caráter sabotador, algo para se culpar. Talvez eu tenha uma parcela de culpa, mas se eu jogar larvas nessa cicatriz ela volta a ficar ferida.
Ah, que saudade da minha amiga Sarah. Aquela minha amiga que estava sempre comigo, que me abrigou em sua casa quando eu tive desentendimentos físicos com o marido da minha mãe, que fazia o melhor bolo de floresta negra, e tinha a audácia de colocar pimenta biquinho em todo e qualquer molho vermelho. Aquela minha amiga, que cantava “Solitária” da Banda mais bonita da cidade, e que ia, frequentemente, comigo até ao cemitério para queimar um baseado. Será que dali surgiu a vontade de se relacionar com a mulher que hoje namora? Receio que, frequentemente, me pego pensando como um ex capitão do exército nesses meus moralismos.
As notícias correram, e na cidade do interior que eu vivia, não demorou muito para chegar até mim. Sarah estava envolvida não apenas com o encourado, mas também com o Cramunhão. Que baque! E eu pensando que coisas assim só aconteciam nas minisséries e nos filmes dramáticos, e em cenários apoteóticos dos polos culturais do país. Mas não. Está mais perto do que imagina. Logo ali, na pessoa que dividia cama, piras, e intimidades comigo. Na minha amiga Sarah.
Daqui adiante houveram inúmeras situações de embrulhar o estômago, e Sarah morou na minha cabeça por noites e noites, sem pagar aluguel. Quantos cabelos brancos eu não adquiri, hein. E reencontrar amigos da época onde vivíamos nossas mais deliciosas aventuras joviais era como um nocaute. Falar sobre a Sarah, pensar nela, ouvir falar dela, responder perguntas indesejadas sobre ela. Tudo muito delicado e sensível. Dediquei uma peça de teatro a ela. Era um dos poucos mínimos que eu fazia no meu extremo. Além disso, fui até a Igreja Presbiteriana para ver o pseudo-batismo de sua filha. E ela era a única que não estava presente. Aliás, o sentimento era que eu era o único presente. Sua família toda sentindo aquela angústia interna da perda e do luto de alguém que estava viva. Mas que a gente não recebia notícias sólidas. Você me paga por me fazer ir na igreja de crente, Sarah. Você me paga.
Os soluços discretos da viúva do pai, as olheiras dos olhos da tia, o mal-estar inquieto do irmão, e a inocência da sua filha foram cenas dramaticamente marcantes. O Figurante que a embuxou estava lá. Mal olhei pra ele. Dedo necrosado esse o da minha amiga, já disse. O Pastor era seu tio, e ele chamou toda a família para subir no altar. Eu fui o único a ficar sentado nas cadeiras desconfortáveis da igreja. Depois, a célebre comemoração fúnebre foi marcada por um café da manhã, e preciso admitir que fui tão bem tratado que até pensei em voltar. Maldito ceticismo.
Enquanto escrevo, não tenho certeza do seu paradeiro e tampouco da minha fé que você saia disso. Se alguém que estiver lendo isso ainda não entendeu, peço desculpa a quem se incomodar, mas devo admitir que, mesmo usando nomes fictícios, a história é real. O Cramunhão é uma metáfora sobre uma famosa droga que mata anualmente várias pessoas pelo mundo. O Crack. Hoje, qualquer comentário que seja indigesto sobre o assunto, não passa mais pelos meus ouvidos desatentos. E minha amiga, me desculpe, dar um nome tão tosco ao texto, é que isso tudo é uma grande ferida que não sara. Como o nome pressupõe.
Esse é um relato sincero de uma pessoa que está longe e perto de uma amiga adicta, e sinto o desejo estarrecedor de que as pessoas possam saber o quanto isso dói. Isso sim é política antidrogas. Não aquela xoxeira de Proerd. Que os céus, e quem possa ajudar, me ajude a encontrar paz nessas feridas, e que eu possa ter a possibilidade de repetir muitos “te amos” pra minha amiga ainda. Em vida.
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