sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Feliz dia dos Pais. Agosto de 2023

 Oi pai. 

Não é a primeira vez que eu te entrego algo em mãos e fujo para esperar sua possível reação. Lembra quando eu gravei um vídeo para você me deixar cursar Artes com vários amigos e amigas que me apoiavam? Pois bem.

Bom, tenho receio de usar certas figuras de linguagens e meias palavras com você. Você sempre me passou um ar de seriedade e eu não sei até que ponto eu posso chegar nas brincadeiras. 

Meu jeito sempre foi e continua sendo assim. O sujeito que usa de recursos linguísticos pra camuflar muita coisa intrínseca. E talvez você nem saiba o que “intrínseca” significa, mesmo por que sua área de atuação é outra, mas, é o que eu disse… eu sou assim. 

Antes eu até achava que fosse difícil a nossa comunicação. Hoje eu entendo que ela funciona como os velhos “Walkie-talkie” funcionavam nos anos 80. Eu te comunico algo pontual. Você ouve. Comenta algo pontual. Eu ouço. Câmbio desligo. 

Tudo bem, hoje eu torno sólida a ideia de que sua criação foi outra, que os tempos mudaram e que se você aumentasse o tom de voz com seu pai, meu falecido avô João, ele te meteria um murro na boca que levaria todas as coroas da sua arcada dentária no punho. 

E tudo bem, eu já entendi que eu também não o entendo. O Renato Russo tinha razão quando disse isso, por mais que Legião Urbana esteja completamente saturado hoje em dia. Até minha hipnoterapeuta disse isso. Não sobre a banda de rock, mas sobre eu não te compreender. 

Quando eu nasci, cru, uma folha em branco, você já era macho criado. Afeiçoado pela família, bem querido e, por vezes, mal intencionado. Galanteador, com voz de cerimonialista, radialista e de piada ensaiada. 

Eu fui me construindo e aos poucos, percebendo o abismo que existia entre nós. Você tinha teus amigos homens e eu sempre me identifiquei mais com as minhas amigas meninas. Você idolatrava o São Paulo Futebol Clube e eu, idolatrava a Xuxa rainha dos baixinhos. Você via futebol às quartas, e eu odiava as quartas-feiras porque sempre a novela das nove (na época das oito) era mais curta que nos demais dias. 

Você me colocou na escolinha de futsal, mas eu morria por dentro por que eu amava dança e Ballet parecia um sonho inalcançável. Talvez eu tenha virado artista por rebeldia. Algum analista concordaria comigo. 

Veio sua doença, e com ela, uma hipótese pequena pra uma pequena criança de crescer sem o pai presente. No caso, morto. Quis os céus que não fosse esse o destino. Sua morte repentina. Talvez eu até fosse mais conturbado do que eu já sou, caso esse tivesse sido o enredo. Felizmente não foi. Mas o pai presente, nem sempre, esteve vivo. 

A distância entre nossas realidades me impediu de te contar tantas verdades sobre mim e ouvir os conselhos sinceros de alguém que, genuinamente, só me queria bem. Você não soube do meu primeiro beijo, da minha primeira vez, do meu primeiro porre, entre outros. 

Eu também pequei. Eu reconheço. Mas com meu entendimento de hoje, eu vejo que eu já nasci errado. A gente que é assim, já nasce “com um certo problema”. Fui o “problema” de algumas professoras, catequistas, e vivenciei horríveis e traumáticas experiências de bullying. E você não soube. Eu não podia te contar. E ah… como eu quis te contar.

Depois veio a separação, e sinceramente, fora do meu inconsciente ela não foi tão ruim. E por mais que eu saiba que há coisas intrínsecas (a palavra aqui de novo) nesse rompimento, eu nunca identifiquei taticamente os malefícios disso. Porque o meu Pai não podia saber das verdades sobre mim. De quem eu era. Ele longe era mais fácil de esconder. 

Quantas vezes eu já não corri esconder bonecas da Karina, minha melhor amiga, quando você chegava para não sofrer represália. E nisso eu devia ter menos de 05 anos. Como eu poderia estar sendo punido (ou temendo a punição), por ser quem eu era? 

Por que eu não podia ter uma boneca da Ariel? Eu sempre amei a Ariel. Agora já na faixa dos vinte anos eu fui até ao cinema assistir A pequena Sereia e foi um abraço naquela criança que tinha sua boneca escondida. Me emocionei muito no filme. 

Voltando pra linha do tempo, não bastasse eu já ter dado “errado”, eu tinha que ouvir todas as mais cruéis barbáries da sua boca sobre pessoas que eram IGUAIS a mim. Que tinham o mesmo defeito. Que também deram errado. Mesmo cruas, folhas em branco, deram errado. Foi muito dolorido. 

Eu disfarcei. Não muito bem. Me diga você. 

Quantas, milhões de vezes, eu desejei a minha própria morte a não ter que te contar toda a verdade sobre minha realidade. Sobre algo que eu sequer tive escolha. Sobre ser quem eu sou. Nessa caminhada, muitos outros não tiveram o êxito que eu tive em me manter vivo. E em citar isso eu também morro um pouco. 

E se não bastasse já ter dado errado antes, eu ainda optei por ser artista. Que hoje vejo ser um pulsar de luz, um fulgor diante de toda às avessas escuridões. Mas que me custou ouvir mais, incontáveis, comentários teus. 

Fui muitas vezes ignorante, muitas vezes joguei merda no ventilador e eu não culpo o mapa astral ou nada. Eu assumo esse boletim de ocorrência. Talvez meu traço mais masculinizado seja ter a pose sisuda quando creio na minha verdade ou quando boto o rabo entre as pernas e reconheço onde pequei. 

Eu te perdoo por tudo. E antes que algum de nós mude de dimensão, eu quero deixar isso muito nítido. Eu te perdoo por tudo. Por não estar presente nas minhas peças teatrais, por não me ver no Ballet, por não acompanhar e aconselhar minhas primeiras vezes, pelo abismo da nossa relação, pela falta de ímpeto em unir a minha figura a todo o resto da minha família paterna e principalmente, por você ter prospectado tanto esse momento que agora se encerra. Esse momento em que eu te digo a maior e mais dolorosa frase: Pai, sim, eu sou gay! 

E não há cura, não há pecado, não há dinheiro, não há partido político ou entidade que vá mudar isso. É sobre quem eu sou. É sobre com quem eu me relaciono. É sobre mim. 

E também peço desculpa por quebrar suas expectativas jogadas sobre mim. Mas isso é sobre você! É sobre o seu processo de evolução entender. E você que deve lidar com isso. 

Eu te amo, por mais cinza que às vezes eu possa parecer e imaturo. É só pelo Guilherme que teve sua Ariel escondida lá atrás. Quero muito acalenta-lo. 

E acabou os momentos de angústia que antecederam esse dia. Acabou os momentos de camuflagem da minha melhor faceta, e que se encerre aqui tudo que, eu, um dia, temi. Esse ciclo se encerra aqui. Apenas um homem forte como eu, filho de um homem forte como você, poderia fazer isso. 


Câmbio desligo. Guilherme Stella. 13/08/2023.


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