Sexta-feira. Hoje menti pra Martha do RH e realmente não fui trabalhar. Eu disse que peguei insolação e que a médica pediu repouso, mas especifiquei que se ela quisesse que eu fosse buscar um atestado, eu iria. Jogos psicológicos. Aprendi num podcast.
E não fui trabalhar. Minha casa estava um completo pandemônio. As meias limpas misturadas com as sujas, os panos de chão com os de prato, e todo aquele cenário de moleque recém amadurecido com problema paternos harmonizava com o cheiro do lixo que eu esqueci de descer.
Naquela época eu trabalhava muito e estudava médio. Eu fazia faculdade à noite e estava no quinto período de letras, e os trabalhos eram uns mais desestimulantes que os outros. Quis fazer letras para ver se eu entendia as fases românticas ou os versos satânicos, mas o que eu fazia era estudar latim e diagramação de palavras difíceis com termos mais complexos que os da biologia. Humanas também pode ser um saco.
Naquela sexta-feira eu tinha que escrever um artigo e encaminhar para o meu professor até às 23:59. Qualquer minuto a mais desse horário era um décimo descontado da nota final.
O artigo era bobo, mas eu estava esperando criar coragem pra começar. Bloqueios. Bloqueios. Bloqueios. Liguei o computador e acendi um cigarro. Vou fazer um café, pensei. Café com cigarro é a combinação mais eficaz para quem tem problemas protelados, criativos ou de intestino.
Sentei na frente do computador e antes que eu começasse abrir a plataforma para escrever, algo bateu na minha janela. Era um pequeno morcego. Eu não tinha medo de morcegos mas achei estranho. Descartei ele no lixo do banheiro.
Voltei a escrever e comecei a usar minhas qualidades pragmáticas para desenvolver essa merda de artigo. (Perdão o palavreado).
Depois de uma página e alguns cigarros fumados, eu percebi que haviam mais morcegos mortos na minha janela. Três ao todo. Quatro com o que eu havia descartado. Que coincidência, é a mesma quantidade de bitucas de cigarro no meu cinzeiro. Bobagem, pensei.
Vez ou outra, eu parava pra olhar as pessoas felizes com suas taças de Gin tônica nos stories do Instagram, e quase nunca (contém sarcasmo) eu parava pra olhar minha vizinha seminua na janela.
Mas sempre voltava a me concentrar. As horas iam passando, e o nervosismo exigia que eu fumasse mais cigarros. Ao todo no fim da noite haviam 20 morcegos mortos na minha janela. Aquele cheiro inexplicável de algo vivo-morto.
Olhei a hora: 23:57. Pensei ufa. E enviei meu trabalho. Droga esqueci das referências, mas mando em um novo arquivo.
Voltei a me incomodar com os morcegos e pensar se eu devia temer alguma experiência sobrenatural naquela madrugada. Isso é coisa de moleque. Esquece.
Antes de dormir, escrevi uma mensagem pra zeladora do prédio pedindo se ela poderia recolher os morcegos da minha janela na manhã. Ela não visualizou. Já era meia noite.
No outro dia pela manhã, desci com o lixo de três dias atrás. Coloquei tudo num grande saco de lixo de 100L para não ter que me encontrar com nada vivo que se mova dentro do lixo orgânico. Desculpem lixeiros, hoje não facilitei pra vocês. E ainda de brinde toma esse morceguinho infeliz.
Antes de sair, peguei o meu cinzeiro e despejei todos os cigarros fumados na noite anterior dentro do lixo. Pra essa casa não ficar com mais cheiro de defumada, pensei.
Desci com o lixo e fui até a padaria. Comprei um pão. Era sábado e hoje eu ia poder só existir e maratonar The Office. Recebo uma mensagem da zeladora:
“Querido, bom dia. Não sei o que aconteceu mas não há nenhum morcego na sua janela. Você já os descartou?”
E eu respondi que não. Mas como assim???? Eu vi eles. Todos. Eram 20 ao todo. Como num maço de cigarro. 20. Eu passei a noite confabulando sobre isso. Eu não estou doido. Eu até joguei um no lixo do banheiro, que eu, inclusive, peguei com papel higiênico na mão.
Engasguei seco e agradeci. Logo depois, contei tudo pro meu grupo com três amigos do whatsapp enquanto fazia meu ovo mexido para comer com pão. E vi minha vizinha da frente, a vizinha seminua, que é como eu a chamo carinhosamente, fumando um cigarro. Ela estava com um pijama bem bonito. Tipo cena de filme, a pessoa tá sempre preparada para ser filmada. Já acorda com os dentes limpos, as orquídeas dos vasos mais coloridas, os pelos dos pets mais penteados, etc. Da até para se ouvir um MPB contemporâneo de trilha sonora. Me distraio um pouco com os ovos queimando e ouço um grito. Ela se assustou com alguma coisa.
Era um morcego que havia batido na janela dela. Ela jogou a bituca na rua (sujeito a multa) e voltou pra dentro.
Eu vou parar de fumar agora.
Guilherme Stella, 2022.
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